Mais de 30 dias após a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) obter decisão judicial garantido o regime de semiliberdade para a indígena Kokama que foi violentada enquanto estava presa ilegalmente na 53ª Delegacia de Santo Antônio do Içá (a 880 quilômetros a oeste de Manaus), a mulher continua isolada em um abrigo da capital, sem visita dos familiares, por falta de manifestação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), responsável pela supervisão do cumprimento da pena em semiliberdade.
De acordo com informações, a indígena já está com as chaves da residência que ganhou do Governo do Estado mediante acordo homologado pela Justiça. Contudo, para ser transferida para a nova moradia, também é necessário aval da Funai por meio de um laudo que ainda não foi emitido.
Nesta quarta-feira (10), a indígena esteve na sede da DPE-AM, onde reuniu com os defensores públicos Theo Costa, do Núcleo de Atendimento Prisional (NAP), e Roger Moreira, titular da Defensoria Especializada Na Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, da Pessoa Com Deficiência e de Grupos Socialmente Vulneráveis.
Durante a reunião, ela reforçou a necessidade da transferência para a nova residência, onde deve abrigar uma irmã de 27 anos que está em tratamento de um câncer agressivo, além da mãe, padrasto e dos dois filhos (um de 13 anos e outro de quase três anos), os quais não vê desde quando foi transferida de Santo Antônio do Içá para Manaus.
A irmã da indígena passou por uma cirurgia que retirou órgãos como útero e reto e recebeu alta no último domingo (7). Ela está morando em um quarto de hotel na região central da capital e está usando sondas para se alimentar e fazer as necessidades fisiológicas.
Acompanhados de uma representante da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejusc), a indígena e os defensores Theo Costa e Roger Moreira visitaram a irmã da mulher após a reunião na DPE-AM.
O restante da família da indígena está a caminho de Manaus, com previsão de chegada nesta sexta-feira (12). Sem apoio de órgãos que inicialmente disseram que ajudam a indígena, parte dos custos das passagens foi paga com recursos próprios do defensor público Roger Moreira.
A indígena afirma que sua maior preocupação neste momento é estar junto dos familiares. “Minha irmã passou por uma cirurgia delicada e está precisando da minha ajuda. Minha mãe e meus filhos estão chegando também”.
“O pedido que eu fiz é para que eu ficasse junto ao meu núcleo familiar o quanto antes e até o momento a Justiça ainda não definiu nada. Eu preciso o quanto antes ter essa decisão para estar com a minha irmã que está doente. A Defensoria Pública já informou ao juízo da Vara de Execução Penal sobre essa situação”.
Na avaliação do defensor público Theo Costa, a decisão que concedeu a semiliberdade para a indígena “na realidade está sendo utilizada contra ela”.
Ele explica que, quando realizou pedido de prisão domiciliar, a DPE-AM obteve parecer favorável do Ministério Público. Entretanto, houve uma readequação pelo juízo da Vara de Execuções Penais (VEP), que concedeu o cumprimento de pena em regime especial de semiliberdade para indígenas condenados, conforme previsão do Estatuto do Índio (lei 6.001/1973), que deve ser supervisionado pela Funai.
Contudo, a Funai não foi chamada com antecedência pelo juízo para discutir os termos e ausência disso está impedindo a indígena de cumprir o regime, que foi deferido há mais de um mês. “Nesse meio termo, o próprio Estado do Amazonas já cumpriu com parte do acordo concedendo uma residência para ela. Ou seja, ela já tem para onde ir e continua na casa abrigo”, observa o defensor.
“Isso acaba sendo não só um transtorno, mas uma violação institucional em razão dessas omissões nos processos. Omissões que vêm ocorrendo desde o início e estamos vendo acontecer novamente”, disse.
No dia 2 deste mês, o defensor informou o juízo da VEP sobre a situação da irmã da indígena e a disponibilidade da residência, solicitando autorização para a transferência dela da casa abrigo para a nova moradia. “Até hoje não obtivemos uma decisão por parte do juízo. O processo fica concluso para decisão, infelizmente sem qualquer decisão judiciária”.
“Nosso objetivo é fazer com que ela consiga cumprir o regime de semiliberdade nos termos em que foi deferido e também consiga conviver com seus familiares e prestar a ajuda necessária para a irmã, que se encontra nessa situação delicada de saúde”, destaca Theo Costa. “Lembrando que a irmã dela não tem ninguém para apoiá-la e nem um lugar para morar aqui em Manaus”, acrescenta.
“Ela teve que conceder uma parte de suas economias para a irmã ter um lugar para ficar por algum período, mesmo tendo uma residência concedida pelo Estado. É uma incoerência causada por um atraso, mais uma mora judicial”, enfatiza Costa.
Ao conceder a semiliberdade prevista no Estatuto do Índio, a VEP, explica o defensor, deu a responsabilidade para a Funai regulamentar o cumprimento do regime. “Mas, passado mais de um mês até o momento, não há nada encaminhado nem formalizado, nenhuma proposta de como isso se daria. Na prática, quem está fazendo todos os cuidados da indígena, não é a Funai, mas sim a Secretaria de Justiça. Isso é algo que não deveria acontecer e acontece por conta dessa decisão judicial que foi concedida pela metade”.
Para ele, as omissões criam um “vácuo jurídico” com consequências não só para a indígena, mas também para os filhos, a irmã e a mãe idosa, que convive com as sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC). “Assim, uma omissão de uma decisão judicial pode causar tantos transtornos a uma, não só uma pessoa, mas a todo o núcleo familiar”.
Sem apoio
O defensor Theo Costa disse que órgãos federais de proteção foram acionados pela DPE-AM para atender a família da indígena em Santo Antônio do Içá, que estava sofrendo ameaças. “O Defensor Público Geral do Amazonas, Rafael Barbosa, encaminhou um ofício ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e à própria Funai, informando do risco de segurança que os familiares da indígena estavam sofrendo, solicitando que a Funai averiguasse os riscos e que tomasse providências, como a transferência deles para Manaus, onde poderiam ser melhor assistidos pela Defensoria e demais órgãos”.
“Entretanto, a Funai sequer se deslocou a Santo Antônio do Içá para averiguar essa situação. E obviamente isso também causa um outro transtorno, porque imagina o emocional da indígena sabendo que os seus filhos correm risco”, destaca.
A mulher indígena conta que a Fundação dos Povos Indígenas se prontificou a prestar assistência a ela e aos familiares. “A Funai disse que ia trazer minha família, mas não trouxe. Então, o doutor Roger, teve que disponibilizar do próprio bolso dele um dinheiro para que a minha família pudesse se retirar de lá”, disse.
“A Funai se encarregou, no momento da minha saída, de me dar o suporte e ajudar minha família, mas não ajudou. Tanto é que eu estou arcando com os gastos com a minha irmã, de alimentação. Eles não foram visitá-la. Eu que estou tirando do meu bolso para eu pagar o aluguel dela, mesmo eu tendo uma residência que o Estado me deu, graças a Deus. Só que a Funai, praticamente, está impedindo a minha ida para minha residência, para o meu núcleo familiar. Então, eu preciso de uma decisão definitiva. Que a Justiça possa me ajudar”.
Defensor doou passagens
O defensor Roger Moreira afirma que a DPE-AM está preocupada com o bem-estar da indígena e com sua saúde mental. “Eu percebo que ela está muito ansiosa para reencontrar a sua família, o que é natural. Ela deixou um bebê que estava amamentando no momento em que sofreu uma das violências mais terríveis e cruéis que uma mulher pode sofrer”, relembra.
“A minha preocupação, claro, como defensor, tentando ajudar nos processos, peticionando, mas acima de tudo é como ser humano. Eu busquei resolver junto com a Funai pelos meios normais, que é o contato, a parte burocrática, mas assim, sinceramente, burocracia não resolve muita coisa”, afirma.
O defensor disse que resolveu ajudar quando percebeu que “não havia esse ânimo de resolver na presteza que um caso como esse merece e vendo o sofrimento, principalmente da mãe, preocupada com duas filhas que estão em Manaus”.
Roger Moreira pagou, com recursos próprios, parte do deslocamento da família da indígena para Manaus. “Eles já tinham metade do dinheiro das passagens e eu ajudei com outra metade para trazer essa família para cá. Até porque, tínhamos conhecimento de que havia pressão nessa família lá em Santo Antônio do Içá por parte de algumas autoridades. Então, assim, para evitar também isso, nós achamos que ela estaria melhor, assim, com a com a com essa reunião familiar”.
A ideia, disse o defensor, é garantir uma base de sustento socioemocional para ela. “Você, quando você tá perto da sua família, é uma coisa. Quando você está longe de quem você ama, quando você está sozinho, você olha para o lado, você não tem para quem nem chorar. quem se sustentar”, diz.
De acordo com Roger Moreira, a DPE-AM atua para garantir que a indígena obtenha “tudo aquilo que as autoridades que se comprometeram a dar para ela no dia 29 de julho, em reunião aqui na Defensoria Pública”.
Passo para recomeçar
Reunir a família novamente, para a indígena, significa um recomeço. “A expectativa está muito grande para reencontrá-los. Vocês não têm noção de como está dentro do meu coração saber que eles estão mesmo no rio vindo para cá. É uma benção. Depois de tudo que aconteceu, é uma vitória estar perto da minha família, das pessoas que eu amo”.
Entenda o caso
A mulher indígena foi submetida a condições desumanas durante o cumprimento de pena privativa de liberdade em Santo Antônio do Içá.
Condenada, a mulher de 29 anos de idade cumpriu mais de nove meses da pena na 53ª Delegacia Interativa de Polícia de Santo Antônio do Içá, onde enfrentou graves violações de direitos humanos, incluindo tortura e sucessivos estupros por parte de policiais militares e guarda municipal.
Durante o período em que esteve detida na delegacia, a indígena, que estava em resguardo e lactante, foi forçada a realizar trabalho externo de oito horas diárias, sem folgas, em condições degradantes. Além disso, ela e o filho recém-nascido foram mantidos em uma cela mista, expostos a situações de violência e abuso.
O tratamento desumano resultou em sérios problemas na saúde mental e física da indígena, incluindo Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e necessidade de cirurgia para tratar hemorroida em estágio crítico.
Investigações conduzidas pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Amazonas (MP-AM) resultaram em denúncias contra cinco policiais militares e um guarda municipal da cidade. Laudos periciais confirmaram a presença de vestígios de violência sexual, além de lesões físicas compatíveis com os relatos da vítima.
A situação precária da unidade policial também foi reconhecida em ofícios oficiais da própria Justiça local, que admitiram que a delegacia não possuía estrutura adequada para custodiar mulheres. Apesar disso, a transferência da indígena para Manaus só ocorreu após quase 10 meses, agravando seu estado físico e emocional, mesmo com sucessivos pedidos da Defensoria pela sua transferência.
A denúncia de estupro chegou ao conhecimento da Defensoria Pública em 28 de agosto de 2023, um dia após a transferência da vítima para a Unidade Prisional Feminina de Manaus. Ela foi presa em 11 de novembro de 2022, por sentença condenatória a 16 anos e 7 meses de reclusão por crime hediondo, ao buscar a delegacia para fazer uma denúncia de violência doméstica. Na ocasião, não houve audiência de custódia, nem comunicação à Defensoria, em violação a garantias fundamentais.
Ainda sem ter sido formalmente intimada da prisão na ocasião, a Defensoria Pública atuou de forma imediata no caso por manter acompanhamento constante e sistemático dos processos envolvendo pessoas custodiadas. Assim que identificou a presença de uma mulher presa com um recém-nascido, em dezembro de 2022, protocolou um pedido de prisão domiciliar, reiterado diversas vezes.
No mês passado, a DPE-AM protocolou um requerimento solicitando ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva indulto humanitário, com pedido alternativo de comutação de pena.
Com informações da assessoria